Algumas histórias bíblicas provocam a nossa imaginação, especialmente quando descrevem narrativas que lutam contra o conceito daquilo que chamamos de “normalidade”, desafiando o que consideramos natural e subvertendo as leis da física nos colocando sempre em posição confrontadora, seja desafiando o que aprendemos na educação formal, seja desafiando nossa fé.
No livro de Marcos no capítulo 6 versos de 45 a 56 lemos a narrativa da travessia de barco dos discípulos pelo mar da Galileia, logo após a multiplicação dos pães e dos peixes. Cheia de eventos que desafiam nossa imaginação e aquilo que temos como possível, esta narrativa descreve uma sequência de eventos “atípicos” que revelam não só o absoluto controle de Jesus quanto ao que aconteceria como também uma mensagem implícita que vai sendo reforçada a cada momento em que a apatia se transforma em susto e espanto dos discípulos.
Temos que entender que ao ler o texto temos uma posição muitíssimo privilegiada em relação aos discípulos e ao povo participantes desta história porque temos o benefício do contexto e da narrativa explicativa de Marcos, e isto deveria nos colocar a responsabilidade de uma leitura cuidadosa e criteriosa que busca entender e ultrapassar as barreiras do tempo entendendo o contexto, o autor, os leitores originários (aqueles que originalmente receberam o texto) e a mensagem central que se estende pelas escrituras e pela vida de Cristo. É fundamental conseguir perceber a conexão entre o evento do primeiro envio dos discípulos (v7-13), a morte de João Batista (v14-29), a multiplicação dos pães (v30-44) e a narrativa que queremos estudar para entender a mensagem central do texto fazendo com que este entendimento salte ao nosso coração e então gere em nós o conhecimento de Cristo que irá gerar novas vidas movidas pelo mesmo propósito.
“Logo em seguida, Jesus insistiu com os discípulos para que entrassem no barco e fossem adiante dele para Betsaida, enquanto ele despedia a multidão. Tendo-a despedido, subiu a um monte para orar.” (v45-46) a narrativa expressa sem dúvidas resistência dos discípulos em seguir a instrução de Jesus mesmo logo após a experiência do milagre da multiplicação. “Ao anoitecer, o barco estava no meio do mar, e Jesus se achava sozinho em terra. Ele viu os discípulos remando com dificuldade, porque o vento soprava contra eles.” (v47-48a) Jesus vê os discípulos em dificuldade ao anoitecer. “Alta madrugada, Jesus dirigiu-se a eles, andando sobre o mar; e estava já a ponto de passar por eles. Quando o viram andando sobre o mar, pensaram que fosse um fantasma. Então gritaram, pois todos o tinham visto e ficaram aterrorizados.” (v48b-50a), Jesus os deixa em “dificuldade” por bastante tempo; até de madrugada (entre 3 e 6 horas da manhã); e lhes dá um grande susto. “Mas Jesus imediatamente lhes disse: “Coragem! Sou eu! Não tenham medo!” (50b) Até que então chegamos ao versículo 51 “Então subiu no barco para junto deles, e o vento se acalmou; e eles ficaram atônitos, pois não tinham entendido o milagre dos pães. O coração deles estava endurecido.”, e aí então percebemos que os eventos que eles vivenciaram, e que continuariam vivenciando estavam todos conectados. Vejam, Jesus os envia de dois em dois para curar e expulsar demônios e pregar o arrependimento, confunde Herodes o fazendo pensar que João Batista tinha ressuscitado (v16), efetua o milagre da multiplicação de pães e peixes e ainda assim seus discípulos estão com o coração endurecido.
Temos a tendência de nos achar superiores àqueles que recebem adjetivos negativos nas narrativas bíblicas, mas perceba e entenda que sua percepção só acontece porque somos guiados pelos autores bíblicos e pela compreensão completa da história que se desenvolve em poucos parágrafos de leitura. Saiba que teríamos e temos o mesmo coração dos discípulos em diversas situações e eventos de nossas vidas, e é exatamente por este motivo que precisamos perceber com bastante atenção que a falha dos discípulos de achar que tinham o controle das situações ou que sabiam o que era certo se fazer, ou ainda que conheciam o padrão das “leis naturais” e “leis da física” (ainda que não com esta nomenclatura) também é exatamente a nossa falha hoje. Vivemos como se a tomada de decisão diária dependesse de nosso conhecimento, inteligência e controle sobre as coisas, mesmo sabendo que as ações de Deus em nossa vida nunca se submetem a nenhum destes parâmetros.
Precisamos aprender hoje que nossa vida com Cristo não será limitada por nossas percepções e certezas e sim pelo poder d´Ele que operando em nós transborda para uma nova vida que em tudo depende das ações de Graça que se manifestam nos pequenos e grandes eventos de nossa história, sabendo que esta mesma Graça condutora será revelada através de nós de modo incontrolável àqueles a quem Ele quer alcançar.